O espanto é quando um objeto se coloca diante de nós como um enigma a ser decifrado: “Decifra-me ou te devoro!” Conchas são objetos espantosos. Enigmas. As conchas me fizeram pensar.
Foi um espanto estético. Foi a beleza que exigiu que eu a decifrasse. Conchas são objetos assombrosos, construídos segundo rigorosas relações matemáticas. É possível transformar conchas em equações. Os moluscos não eram apenas engenheiros competentes na construção de casas. Eram também artistas, arquitetos. Suas casas tinham de ser belas. Será que a natureza tem uma alma de artista? Coisa estranha essa, com certeza alucinação de poeta, imaginar que a natureza seja uma casa onde mora um artista! Não para Bachelard, que não se envergonhava em falar sobre “imaginação da matéria”. Haverá uma analogia entre a natureza e o espírito humano? Serão os homens apenas a natureza tomando consciência de si? Antes que a Pietà existisse como escultura existiu como realidade virtual na alma de Michelangelo. Antes que as conchas existissem como objetos assombrosos elas existem como realidades virtuais na “alma” dos moluscos...
O espanto ante as conchas me faz pensar. Pensei que a vida não produz apenas objetos úteis, ferramentas adequadas à sobrevivência. A vida não deseja apenas sobreviver. Ela não se satisfaz com a utilidade. Ela constrói os seus objetos segundo as normas da beleza. A vida deseja alegria. Assim acontece conosco: precisamos sobreviver e para isso cultivamos repolhos, nabos e batatas e estabelecemos a ciência do cultivo de repolhos, nabos e batatas - ciência que se transmite de geração em geração, nas escolas. E esse é um dos sentidos da ciência: receitas para a construção de ferramentas para a sobrevivência. Mas, por razões que se encontram além das razões científicas, talvez por obra do artista invisível que mora em nós, gastamos nosso tempo e nossas forças na produção de coisas inúteis, tais como violetas, orquídeas e rosas, coisas que não servem para nada e só dão trabalho... Nosso corpo não se alimenta só de pão. Ele tem fome de beleza. Creio que Jesus Cristo não se importaria e até mesmo sorriria se eu fizesse uma paráfrase da sua resposta ao Diabo, que o tentava com a solução prática: “Não só de repolhos, nabos e batatas viverá o homem, mas também de violetas, orquídeas e rosas...”
Ume menina perguntou a Mário Quintana se era verdade que os machados públicos iriam cortar um maravilhoso pé de figueira que havia numa praça. Isso o levou de volta aos seus tempos de menino – no quintal de sua casa havia uma paineira enorme que, quando florescia, era uma glória. Até que um dia foi posta abaixo, simplesmente “porque prejudicava o desenvolvimento das árvores frutíferas. Ora, as árvores frutíferas! Bem sabes, menizazinha, que os nossos olhos também precisam de alimento...”
Penso que, desde que o objetivo da educação é permitir que vivamos melhor, nossas escolas deveriam tomar a natureza como sua mestra. Assim, já que tanto falam em Piaget, imaginei que poderiam adotar as conchas como símbolos – afinal de contas, foi no estudo dos moluscos que o seu pensamento sobre educação se iniciou... - posto que nelas se encontra, em resumo, toda uma filosofia: foi o espanto diante das conchas que me fez filosofar... E quando, perguntados por pais e alunos sobre as razões de serem as conchas os símbolos da escola, os professores teriam uma ocasião para lhes dar a primeira aula de filosofia da educação: “O objetivo da educação é ensinar as novas gerações a construir casas. É preciso que as casas sejam sólidas, por causa da sobrevivência. Para isso as escolas ensinam a ciência. Mas não basta que nossas casas sejam sólidas. É preciso que sejam belas. A vida deseja alegria. Para isso as escolas ensinam as artes. É preciso educar os sentidos.”
Hume, ao final do seu livro Investigação sobre o entendimento humano, propõe duas perguntas, somente duas, que, se feitas, produziriam uma assepsia geral do conhecimento. De forma semelhante, e inspirado pela sabedoria dos moluscos e suas conchas, quero propor duas perguntas a serem feitas a tudo aquilo que se ensina nas escolas. Primeira: isso que estou ensinando, é uma ferramenta? Tem um uso prático? Aumenta o poder do meu aluno sobre o mundo que o cerca? De que forma ele pode usar isso que estou ensinando como ferramenta para construir a sua concha, a sua “casa”? Segunda: isso que estou ensinando contribui para que o meu aluno se torne mais sensível à beleza? Educa a sua sensibilidade? Aumenta suas possibilidades de alegria e espanto? Concluo com as palavras de Hume: se a resposta for negativa, então, “que seja lançado ao fogo” – porque nada tem a ver com a sabedoria da vida. Não passa de tolice e perda de tempo...
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