domingo, 3 de julho de 2011

Sobre Moluscos, conchas e beleza

 Voltamos ao mundo dos moluscos que fez Piaget pensar sobre os homens... Deles a primeira coisa que vi foram as conchas. Eu vi, simplesmente, sem nada saber sobre suas origens. Ignorava que existissem moluscos. Não sabia que elas, as conchas, tinham sido feitas para serem casas daqueles animais de corpo mole que, sem elas, seriam devorados pelos predadores. Meus olhos apenas viram. Viram e se espantaram. O espanto: os gregos sabiam que é no espanto que o pensamento começa.
O espanto é quando um objeto se coloca diante de nós como um enigma a ser decifrado: “Decifra-me ou te devoro!” Conchas são objetos espantosos. Enigmas. As conchas me fizeram pensar.
Foi um espanto estético. Foi a beleza que exigiu que eu a decifrasse. Conchas são objetos assombrosos, construídos segundo rigorosas relações matemáticas. É possível transformar conchas em equações. Os moluscos não eram apenas engenheiros competentes na construção de casas. Eram também artistas, arquitetos. Suas casas tinham de ser belas. Será que a natureza tem uma alma de artista? Coisa estranha essa, com certeza alucinação de poeta, imaginar que a natureza seja uma casa onde mora um artista! Não para Bachelard, que não se envergonhava em falar sobre “imaginação da matéria”. Haverá uma analogia entre a natureza e o espírito humano? Serão os homens apenas a natureza tomando consciência de si? Antes que a Pietà existisse como escultura existiu como realidade virtual na alma de Michelangelo. Antes que as conchas existissem como objetos assombrosos elas existem como realidades virtuais na “alma” dos moluscos...
O espanto ante as conchas me faz pensar. Pensei que a vida não produz apenas objetos úteis, ferramentas adequadas à sobrevivência. A vida não deseja apenas sobreviver. Ela não se satisfaz com a utilidade. Ela constrói os seus objetos segundo as normas da beleza. A vida deseja alegria. Assim acontece conosco: precisamos sobreviver e para isso cultivamos repolhos, nabos e batatas e estabelecemos a ciência do cultivo de repolhos, nabos e batatas - ciência que se transmite de geração em geração, nas escolas. E esse é um dos sentidos da ciência: receitas para a construção de ferramentas para a sobrevivência. Mas, por razões que se encontram além das razões científicas, talvez por obra do artista invisível que mora em nós, gastamos nosso tempo e nossas forças na produção de coisas inúteis, tais como violetas, orquídeas e rosas, coisas que não servem para nada e só dão trabalho... Nosso corpo não se alimenta só de pão. Ele tem fome de beleza. Creio que Jesus Cristo não se importaria e até mesmo sorriria se eu fizesse uma paráfrase da sua resposta ao Diabo, que o tentava com a solução prática: “Não só de repolhos, nabos e batatas viverá o homem, mas também de violetas, orquídeas e rosas...”
Ume menina perguntou a Mário Quintana se era verdade que os machados públicos iriam cortar um maravilhoso pé de figueira que havia numa praça. Isso o levou de volta aos seus tempos de menino – no quintal de sua casa havia uma paineira enorme que, quando florescia, era uma glória. Até que um dia foi posta abaixo, simplesmente “porque prejudicava o desenvolvimento das árvores frutíferas. Ora, as árvores frutíferas! Bem sabes, menizazinha, que os nossos olhos também precisam de alimento...”
Penso que, desde que o objetivo da educação é permitir que vivamos melhor, nossas escolas deveriam tomar a natureza como sua mestra. Assim, já que tanto falam em Piaget, imaginei que poderiam adotar as conchas como símbolos – afinal de contas, foi no estudo dos moluscos que o seu pensamento sobre educação se iniciou... - posto que nelas se encontra, em resumo, toda uma filosofia: foi o espanto diante das conchas que me fez filosofar... E quando, perguntados por pais e alunos sobre as razões de serem as conchas os símbolos da escola, os professores teriam uma ocasião para lhes dar a primeira aula de filosofia da educação: “O objetivo da educação é ensinar as novas gerações a construir casas. É preciso que as casas sejam sólidas, por causa da sobrevivência. Para isso as escolas ensinam a ciência. Mas não basta que nossas casas sejam sólidas. É preciso que sejam belas. A vida deseja alegria. Para isso as escolas ensinam as artes. É preciso educar os sentidos.”
Hume, ao final do seu livro Investigação sobre o entendimento humano, propõe duas perguntas, somente duas, que, se feitas, produziriam uma assepsia geral do conhecimento. De forma semelhante, e inspirado pela sabedoria dos moluscos e suas conchas, quero propor duas perguntas a serem feitas a tudo aquilo que se ensina nas escolas. Primeira: isso que estou ensinando, é uma ferramenta? Tem um uso prático? Aumenta o poder do meu aluno sobre o mundo que o cerca? De que forma ele pode usar isso que estou ensinando como ferramenta para construir a sua concha, a sua “casa”? Segunda: isso que estou ensinando contribui para que o meu aluno se torne mais sensível à beleza? Educa a sua sensibilidade? Aumenta suas possibilidades de alegria e espanto? Concluo com as palavras de Hume: se a resposta for negativa, então, “que seja lançado ao fogo” – porque nada tem a ver com a sabedoria da vida. Não passa de tolice e perda de tempo...

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